Do Reflexo do Reflexo: Noções de Espetáculo

Publicado em 18/09/2025

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Campbell's Soup Cans de Andy Warhol
O Reflexo,do Reflexo,do Reflexo

O primeiro contato com a obra foi através de alguém que citou apenas o título em um vídeo: "Isso aí é a Sociedade do Espetáculo... de Guy Debord." E só. Não citou mais nada além da obra. Mesmo assim, só de ouvir o nome eu "saquei" do que se tratava. O título, para mim, era bem explícito do que significava o espetáculo.

Sem procurar pela obra, comecei a refletir sobre a natureza da sociedade e do espetáculo. Logo liguei a noção de "espetáculo" com "imagem": ora, se o espetáculo é uma apresentação, a imagem é o nosso espetáculo diante da sociedade, a imagem que passamos. Mas fuçando outras camadas, invariavelmente chegaríamos à tese de que o espetáculo não seria só a nossa imagem física, mas também a imagem de como nos comportamos diante da sociedade.

Se a nossa honestidade, por exemplo, é uma representação de uma ética sólida ou apenas a representação de uma ética? E isso se estende a várias outras noções de virtudes ou emoções. Se o que vivemos no dia a dia é algo real, ou apenas uma grande representação: um espelho refletindo outro espelho, um grande baile de máscaras, onde o que importa não é a pessoa em si, mas o que ela aparenta vestir. Isso me faz pensar se o que conhecemos é realmente real ou apenas a cópia de uma cópia de algo realmente real (bem platônico, há).

Essa foi a minha reflexão apenas do título: certos fragmentos de pré-conceitos e percepções minhas serviram como catalisador para montar um quebra-cabeça de conceitos que, na minha cabeça, faziam sentido. Mas não tive coragem de ir além disso. Além de ser desonesto por não ter lido a obra e me sentir indigno por minhas próprias capacidades intelectuais, também tinha tanta coisa para ler que não me sentia no direito de ir "sentado na janelinha".

O espetáculo que eu já conhecia sem saber

Na verdade, já vinha observando manifestações desse fenômeno há tempos. Percebia, por exemplo, como certas análises intelectuais pareciam mais preocupadas em soar eruditas do que em realmente compreender - uma "inteligência de verniz" que usa jargões técnicos para criar aura de conhecimento, mas que no fundo é superficial. Ou como palavras perdiam seu significado real: quando chamamos qualquer um de "gênio", o que sobra para Beethoven? Era um esplendor nominal mascarando um vazio semântico.

Também notava como vivemos numa profusão de sons, palavras e imagens que se anulam - um hiperruído que não informa, apenas satura. Diferente de épocas anteriores, quando o acesso ao saber exigia esforço e filtros naturais, hoje temos volume colossal de conteúdo, mas essa facilidade não se converte em formação. O ruído é tanto que o próprio sentido de valor se dilui.

Finalmente tomei vergonha na cara (e algum dinheiro para essas empreitadas) e comprei o livro. Fiquei surpreso ao perceber que certas coisas apresentadas coincidem com o que havia pensado. As Teses 57, 151, 153, 159, 179, 203 e 208, além dos comentários III e VIII, foram as que me mostraram confluências entre o pensamento de Debord e o meu, e sobre as quais resolvi comentar.

Na tese 57, por exemplo, Debord mostra como o espetáculo subverte até as coisas subversivas — como a própria revolução. É o reflexo do reflexo. Aqui penso que a imagem do espelho funciona melhor do que a da cópia: não é apenas a reprodução que vai perdendo cor ou forma, mas a inversão da própria imagem, como se cada novo reflexo deslocasse ainda mais o sentido original.

Expandindo para além do capitalismo moderno

Outro ponto importante é que o espetáculo não necessariamente precisa de uma pujança econômica. Ele não depende só do material: surge mesmo em contextos distintos, ainda que em formas diferentes. Debord parece pensar sobretudo no capitalismo, mas vejo que antes dele o espetáculo já existia. Um exemplo clássico é o "pão e circo" dos romanos, em que o espetáculo operava no esvaziamento das preocupações da mente através da satisfação dos instintos mais primitivos: comer, beber, sexo. Claro que o entretenimento faz bem ao ser humano, mas em excesso — e especialmente usado como manobra de distração — ele se torna veneno.

Além dessas três dimensões mais primitivas, a violência também faz parte do espetáculo. Basta olhar para programas sensacionalistas ou jornais "pinga sangue". É fácil provocar no coração humano o senso de violência — e quando espetacularizada, essa violência ganha ares de "justiça", mas sempre no sentido mais basilar possível.

Assim como a violência, há também a exploração do sofrimento. O compadecimento do morador de rua, da família de uma mãe com cinquenta filhos, e assim por diante. Mostra-se como eles são coitados, estão na margem da sociedade, que são oprimidos. Claro que não há nada de errado em mostrar a realidade nua e crua, mas a intenção de lucrar com isso, ou com a falsa compaixão, a falsa empatia, a falsa lágrima — que dura até a próxima desgraça a ser mostrada — é o que mais incomoda.

A subversão dos símbolos

Isso dá um caráter irracional à noção de espetáculo. Ou melhor: uma subversão. A violência da turba é chamada de "justiça", noções de beleza são reduzidas a erotismo, liberdade vira libertinagem, e assim por diante. Noções elevadas são niveladas por baixo.

Mas há algo ainda mais perverso: a subversão da própria subversão, um movimento circular infinito. O espetáculo não apenas coopta a resistência - ele a roteiriza. O coach que vende "libertação do consumismo" vendendo curso. O influencer criticando as redes sociais... nas redes sociais. "Seja autêntico" virando slogan de marca.

Não existe quebra real de paradigma, apenas mudança programada de uma zona de influência para outra. Sai de uma bolha para ir para outra, de uma armadilha para cair na próxima. O que se apresenta como "despertar" ou "liberdade" é apenas migração roteirizada dentro do mesmo sistema. A pessoa acha que está se libertando, mas só trocou de algemas - muitas vezes, por algemas mais sofisticadas.

Fico pensando se isso ocorre como movimento natural humano — de degradação e corrupção, onde os símbolos são esvaziados de seu significado — ou como movimento da "gente de cima", que manipula e remodela tais símbolos. Particularmente, acredito nos dois.

O espetáculo nas redes sociais

Se levarmos a noção do espetáculo para a atual grande mídia, no caso as Redes Sociais, percebemos que a espetacularização é ampliada e explorada junto com a mercantilização do tempo. É até difícil catalogar cada aspecto, não por falta de material, mas por sua abundância e constantes mudanças das noções de espetáculo — possivelmente abordarei isso em outra situação.

Voltando à questão do tempo, é inegável que ele se tornou mais um produto. Influencers de cada bolha exibem rotinas produtivas, regradas e perfeitas, onde cada segundo economizado conta para ser usado em outra atividade produtiva. Sendo bem sincero, essas rotinas são as mais fúteis e improdutivas possíveis, assim como o tempo guardado é usado para outras atividades igualmente fúteis. E nem me dou ao trabalho de detalhar, acredito que já tiveram contato e sabem como funciona.

O grande problema é essa fusão nefasta de tempo e imagem. Não se trata apenas de que o tempo é mercadoria ("time is money"), mas do que fica implícito na relação entre influencer e influenciado.

Traduzindo para o Brasil, há a Trindade profana: casas de aposta, o infame Tigrinho, cursos de variados tipos e outras inutilidades, e conteúdo adulto. Curiosamente, eles representam respectivamente a venda do tempo, da imagem e a exploração dos instintos mais primitivos. Juntos, criam uma grande ilusão de estilo de vida, inacessível e ao mesmo tempo aparentemente ao alcance do cidadão médio.

Essa vida idealizada de luxo, sucesso rápido e com pouco esforço, sexo fácil e afins exige que você siga certas regras apresentadas para ascender. Seja perdendo dinheiro em cassinos, gastando tempo com cursos que não ensinam nada ou vendendo sua imagem nos momentos mais íntimos possíveis, a ilusão permanece: você está sempre participando do espetáculo, sem garantia de recompensa real.

O espetáculo do corpo

Um exemplo concreto dessa lógica é como a musculação deixou de ser apenas um hábito de saúde para se tornar vitrine digital. Influencers expõem físicos hipermodelados omitindo fatores fundamentais: anabolizantes, acompanhamento médico constante, tempo livre integral, estrutura privilegiada. Quando mencionam essas coisas, fazem com tom de piada, como se não fosse relevante.

Essa omissão transfere a responsabilidade do impossível para quem assiste — que, tentando seguir os mesmos passos, se frustra ou recorre a soluções perigosas. A musculação vira estética meritocrática onde só o resultado importa: se você não chegou lá, falhou. Ignora-se que quem está nas redes vive disso, enquanto o cidadão comum enfrenta trânsito, jornada dupla, cansaço. E ainda assim se cobra com a mesma régua.

Esse modelo contamina comportamento, vocabulário, jeito de se mover. Todos começam a parecer versões do mesmo molde. É o espetáculo moldando até nossos desejos mais íntimos sobre o próprio corpo.

O espetáculo intelectual

Além do espetáculo da imagem, existe o que muitas vezes escapa à primeira vista: o espetáculo intelectual. Ele vai desde as instituições de ensino até uma conversa de bar. Nele são feitas análises de coisas não necessariamente profundas, discutem-se assuntos sobre os quais não se tem domínio ou simplesmente se performa conhecimento.

Não só isso, mas também há a burocratização das questões intelectuais. Hoje em dia, são necessários milhões de diplomas para afirmar que se sabe algo — quando, na prática, muitas vezes não se precisa. O próprio juridiquês e formalismos similares demonstram que, nesse espetáculo, importa mais mostrar conhecimento do que realmente tê-lo.

As condições técnicas do espetáculo contemporâneo

O que sustenta tudo isso é uma condição que podemos chamar de hiperruído - não hiperinformação, mas um bombardeio de estímulos que se anulam. Vivemos expostos a uma luz intensa demais: os sentidos não aguçam, mas embotam. O hiperestímulo molda o próprio desejo - apresenta tudo com brilho, cor, movimento e urgência, não deixando tempo para distinguir o que vem de dentro do que foi induzido.

Um exemplo revelador são as "fazendas de views" do Spotify. A música como arte é subvertida a apenas um status imaginário de ser o número 1, que consequentemente traz mais dinheiro. Mas o que importa não é essa manipulação comercial em si, e sim a óbvia influência sobre o grande público. Temos pessoas que baseiam seus gostos pessoais no top 100 da semana, consumindo rankings artificialmente inflados como se fossem escolhas coletivas genuínas.

A pessoa olha a posição e pensa: "essa música deve ser boa, está em primeiro lugar" - sem saber que chegou lá via manipulação. Depois "gosta" da música, mas será que gosta mesmo ou foi induzida a gostar? É o reflexo do reflexo operando na formação do gosto: nossos próprios desejos estéticos viraram eco do espetáculo.

Como distinguir o que é nosso? Até onde aquilo que julgamos querer é vontade genuína ou reverberação do que nos foi imposto, repetido, estimulado? Se cada aspecto da nossa personalidade pode ser composto e alterado de forma artificial para suprir uma demanda insaciável do espetáculo, o que sobra de genuinamente nosso? Essa condição não fica só no virtual - transborda para a vida concreta, decisões, vínculos, interpretação do mundo.